“Melancolia degenerada em insanidade”: a loucura de Dona Maria I de Portugal
Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 17 de dezembro de 1734, nascia em Lisboa a princesa Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana, aquela que com os anos seria conhecida como a rainha louca de Portugal. Era a mais velha das cinco filhas do rei D. José I, “mais alta e mais delgada que as suas irmãs, pálida, de rosto delicado, parecendo propensa à melancolia”, disse o viajante inglês Costigan, para quem as características físicas da princesa do Brasil eram destruídas de “graça feminina”, porém, “na vida privada, a sua conduta era exemplar”. Em 1777, ela herdou a coroa do pai, tornando-se então a primeira mulher a ocupar o trono português. Cerca de 16 anos antes da morte de D. José, D. Maria havia se casado com seu tio paterno, futuro rei D. Pedro III, com quem passou a reinar de forma conjunta. Dessa união, nasceram 6 filhos, entre eles D. João VI, que assumiu a administração do país na qualidade de regente, após sua mãe ter sido diagnosticada como irreversivelmente incapaz de governar, em 1799. O início do reinado de D. Maria foi marcado por uma crise política, provocada pela demissão do marquês de Pombal, responsável por muitas reformas no governo português, seguido pela libertação de vários presos políticos e reabilitação da memória daqueles que haviam sido executados no reinando anterior.
Apesar disso, consta que o período em que D. Maria I esteve de fato no poder foi marcado por alguns avanços. “O comércio e a indústria prosperaram, a balança comercial exibiu o seu primeiro saldo positivo desde havia décadas, o tesouro conheceu alguns anos de relativo desafogo, as letras, as artes e até a ciência floresceram” (MARQUES, 1984, p. 249). O que teria acontecido então para que a rainha, tal como sua ancestral, Joana I de Castela, fosse afastada do governo no ano de 1792? Uma análise do quadro político do período, aliado aos transtornos pelos quais a monarca passou em sua vida privada, talvez ofereçam um pouco mais de esclarecimento para os supostos “ataques de loucura” que a rainha começou a sofrer, frutos de uma natureza delicada e propensa à melancolia. Aos poucos, D. Maria viu o seu mundo de certeza diluir-se diante de si própria, a começar pela perda do marido, D. Pedro III, em 1786, seguido pela morte do seu filho primogênito e herdeiro do trono, D. José, em 1788. A queda do absolutismo na França, através da Revolução de 1789, foi o golpe final à integridade mental da monarca. A religião passou a ocupar então o primeiro lugar na sua vida.
À medida que as notícias sobre a situação na França pioravam, D. Maria se ressentia cada vez mais dos ideais de liberdade defendidos pelos revolucionários, passando a defender a monarquia absolutista e condenando aqueles em seu reino que eram contra a esse tipo de regime. Numa ocasião, por exemplo, em março de 1790, ela ordenou a execução pública de três homens que foram condenados por roubos e assassinatos. Esse tipo de sentença já estava caindo em desuso em Portugal, de modo que muitas pessoas se reuniram na praça principal de Lisboa para assistirem àquela cena. A brutalidade com que os presos foram mortos chocou a população, fazendo-os se arrependerem por sua curiosidade. Gradativamente, a rainha foi se afastando de suas obrigações, ao reduzir o número de suas audiências oficiais. Quando a notícia de que Luís XVI e Maria Antonieta haviam sido capturados na sua tentativa de fuga, em 1791, chegou a Portugal, a soberana ficou bastante afetada, ordenando em seguida o envio de 2 milhões de cruzados, em apoio à causa do rei da França. No final do ano, seu estado de saúde piorou consideravelmente, agravado por crises de melancolia, insônia e dores no estômago.
No dia 4 de janeiro de 1792, a monarca precisou passar por uma “sangria”, tratamento médico medieval que era mais prejudicial à saúde do paciente do que benéfico. Estava triste e os médicos tentavam achar a causa de sua apreensão e mal-estar, desconsiderando que eles eram mais mentais do que físicos. O príncipe D. João se preocupava bastante com o estado de saúde da mãe, e tentou fazer o que pôde para aliviar suas tensões, organizando uma viagem para Salvaterra. Mas, de acordo com o ministro Walpole, “a saúde da rainha não melhorou com sua visita para Salvaterra, onde as chuvas desde a sua chegada eram pouco saudáveis e até inconvenientes”. A partir de então, D. Maria passou a alternar entre momentos de lucidez e momentos de insanidade, indispondo-se até com seu confessor, o bispo de Algarve, que a pressionava a reabilitar famílias rebaixadas durante o reinando do seu pai. Os médicos foram mais uma vez chamados para acalmar os nervos da rainha, submetendo-a a nova sangria, o que certamente só fez piorar sua condição. Apesar disso, na tarde de 2 de fevereiro, ela se sentia bem o bastante para comparecer ao teatro e assistir à ópera. Mas, durante a apresentação, sofreu uma forte crise e precisou ser levada de volta para seus aposentos às pressas, onde passou uma noite difícil.
Dois dias depois, D. Maria foi levada até Casa do Senado, onde fez uma aparição pública aos súditos que estavam reunidos na praça, preocupados com a saúde de sua soberana. A condição mental da rainha se tornou então conhecida por todos. O Secretário dos Negócios Estrangeiros, Luís Pinto, escreveu uma carta ao embaixador português em Londres, relatando os recentes acontecimentos:
É com grande tristeza que o informo de que Sua Majestade está a sofrer de uma aflição melancólica que degenerou em insanidade, até ao que se receia que seja o delírio total. Tendo em vista esta infeliz situação, acredito que seria benéfico que o Dr. Willis, o médico principal que assistiu a Sua Majestade Britânica em circunstâncias similares, viesse a esta corte logo que possível. Proporcionar-lhe-emos todo o dinheiro necessário, sem limitações. Concordaremos com tudo o que proponha, se tiver de celebrar um contrato com ele, e deixará a remuneração à discrição generosa desta corte […]. A rainha teve sempre um temperamento melancólico e sujeito a aflições nervosas. A sua disposição é de grande submissão e tem uma certa timidez, a sua imaginação é viva e os seus hábitos inclinam-se para a espiritualidade. Desde há muitos anos que tem vindo a sofrer de dores de estômago e de espasmos no abdômen, com tendência a piorarem devido à aversão que tem a remédios purgativos, especialmente clisteres que nunca consentia (apud ROBERTS, 2009, p. 91)..
Todos os divertimentos na corte foram então cancelados e preces públicas foram feitas em prol da recuperação da rainha. D. Maria se queixava constantemente de mal-estar, com variações de humor, ora apática, ora excitada. Como os tratamentos médicos não estavam surtindo efeito, ela passou a rejeitar os remédios prescritos, precisando ser quase forçada a ingeri-los. Não obstante, a monarca, em sua exaltação religiosa, começou a desenvolver um medo do inferno e a se preocupar com sua salvação espiritual. Tudo aquilo que, portanto, produzisse alegria e descontração no meio daquela confusão de missas e orações poderia ser considerado um insulto para ela. Inclusive, ela chegou a banir os músicos reais, uma vez que era “impróprio haver música enquanto eram realizadas preces e procissões para a recuperação de sua saúde”. Tendo em vista o quadro da monarca, os ministros do reino tiveram que pedir a D. João para que assumisse os assuntos do governo, enquanto sua mãe não se recuperava. Sem escolha, o príncipe não pôde recusar ao pedido, apesar de se sentir bastante inseguro e pouco preparado para exercer tal incumbência
Enquanto isso, o embaixador português em Londres negociava com o médico Dr. Francis Willis, o mesmo que havia tratado o rei Jorge III de sua insanidade, para viajar até Portugal e prestar seus serviços à rainha D. Maria. Ele chegou em Lisboa no dia 15 de março e logo se reuniu com a soberana. Se acordo com o parecer do Dr. Willis, a rainha possuía algum tipo de doença bipolar que era imune aos tratamentos do médico. Por sua sugestão, a família real se transferiu para Queluz, pois era mais perto do campo, onde a paciente poderia respirar ar puro e ser melhor atendida. Willis acreditava que estando afastado da corte, conseguiria obter algum sucesso na recuperação da monarca, pois assim ela estaria afastada de todos aqueles cortesãos e secretários, cujas atitudes só faziam deixar D. Maria mais excitada. Mas a tarefa não seria tão fácil, já que o protocolo ditava que os cortesãos deveriam cumprimentar a rainha todos os dias e o príncipe D. João não foi capaz de impedir essa prática. Nas palavras de Walpole: “É muito duvidoso que o doutor tenha êxito nesta parte das suas recomendações, considerando a dificuldade em mudar os costumes de etiqueta desta corte”. O resultado foi que o estado de saúde da soberana continuou a piorar.
Diante disso, foi aplicado à D. Maria I os tratamentos mais intensos, que eram quase agressivos, incluindo o uso do colete de forças, aplicação de uma pomada que lhe causou bolhas nas pernas e banhos em água gelada. Deram-lhe vomitivos para aplacar seus humores e, como se recusava a comer, foi forçada a ingerir o alimento através de sonda. Esse procedimento brutal, longe de operar alguma melhora no quadro da paciente, teve o efeito contrário. O médico chegou então à conclusão de que as imagens religiosas afetavam bastante a condição mental da paciente. Para acalma-la, foi recomendado passeios marítimos. Em 8 de julho, diante do seu fracasso, o Dr. Francis Willis se demitiu. Na sua última entrevista com D. Maria, ele lhe fez algumas perguntas:
O Dr. Willis esforçou-se em conversas com a rainha por descobrir se a sua doença seria causada por motivos políticos ou religiosos. Obteve a resposta de que era um assunto do maior segredo. Perguntou-lhe se lhe tinha sido apresentado para assinar algum documento relacionado com os nobres de um período passado. D. Maria respondeu-lhe pela negativa. Questionou-a, em seguida, por que razão tinha proibido o confessor de aparecer na sua presença, só obtendo silêncio como resposta. Após ter refletido sobre esta conversa, a rainha pareceu ter ficado pouco à vontade por ter ido demasiadamente longe e ter falado demais (apud ROBERTS, 2009, p. 93).
A partida do médico deixou a soberana ainda mais inquieta. Nem mesmo a notícia da gravidez de D. Carlota Joaquina, algo pelo qual D. Maria a mui esperava, teve muito efeito sobre seus ânimos. No final do século, ficou evidente para os ministros do reino que a condição mental da monarca não tinha mais como se recuperar e então seu filho, D. João, foi nomeado regente. A historiografia tem sido um pouco cruel para com a imagem da primeira rainha reinante de Portugal, referindo-se a ela apenas como louca e desconsiderando os importantes avanços políticos e econômicos produzidos no período em que esteve em plena posse de suas qualidades mentais. É possível que D. Maria, tal como seu neto D. Pedro IV, fosse esquizofrênica, o que foi considerado na época como loucura. Curiosamente, ela foi a primeira monarca europeia a pisar em território americano, no ano de 1808. Diz-se que quando da fuga da família real para o Brasil, em 27 de novembro de 1807, ela teria dito que “não conduzam tão depressa! As pessoas vão jugar que estamos a fugir”.
Referências Bibliográficas:
BEIRÃO, Caetano. D. Maria I (1777-1792): subsídios para a revisão da história do seu reinado. – 3ª ed. Lisboa: Empresa Nacional, 1994.
MARQUES, H. A. de Oliveira. História de Portugal. – 10ª ed. Lisboa: Palas, 1984, vol. II.
ROBERTS, Jenifer. D. Maria I: a vida notável de uma rainha louca. Tradução de Edgar Rocha. – Alfragide: Casa das Letras, 2009.
SANTOS, Piedade Braga; RODRIGUES, Teresa Ferreira; NOGUERIA, Margarida Sá. Lisboa setecentista vista por estrangeiros. – Lisboa: Horizonte, 1987.
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